25 janeiro 2015

Espiritualidade calabriana: a mística do cotidiano

de Opera Don Calabria, San Zeno in Monte, Verona VR, Italy
Pe. Calábria rezando com crianças
Artigo de Pe. Waldemar Longo, psdp*

O verdadeiro místico não vive e momentos, mas os seus momentos místicos iluminam, de uma luz especial, toda a sua vida. Esta é espiritualidade do cotidiano de São João Calábria.
É dele uma frase que nos introduz neste tema: “viver a vida num clima sobrenatural”. De fato, é próprio da vida consagrada viver e testemunhar a primazia de Deus num mundo materializado e paganizado. Como? O nosso fundador nos dá algumas indicações preciosas.
Em primeiro lugar, o carisma do abandono à Divina Providência, nos garante que Deus não está distante de nós, mas nos acompanha a cada momento da nossa vida: "Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não valeis vós muito mais do que elas? Ora, qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode acrescentar um só côvado à sua estatura. E pelo que haveis de vestir, por que andais ansiosos? Olhai para os lírios do campo, como nascem; não trabalham nem fiam; contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a sua glória se vestiu como um deles. Pois, se Deus assim veste assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé?" (Mt 6, 26-30). E Lucas acrescenta (Lc 12, 7): ''Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não temais, pois. Mais valor tendes vós do que numerosos pardais”.
Ele está presente numa forma respeitosa, silenciosa, não se impõe nem mesmo quando o ignoramos, ou rejeitamos o seu amor. No entanto, é Ele que numa forma as vezes misteriosa, governa, os povos, as nações, a Igreja... acompanha a cada um de nós. Claro, ao Seu grande amor deveríamos responder com um amor apaixonado, total e viver realmente num "clima sobrenatural".
Neste sentido a minha experiência na Índia me ajudou muito. A espiritualidade indiana prega a holística, isto é, o universo é criatura de Deus fazendo um todo com Ele. Eu participo da natureza de Deus, sou profundamente ligado ao mundo animal, vegetal, mineral, ligado ao Todo que é o mesmo Deus dando vida e mantendo vivas todas as suas criaturas. É muito apropriada a expressão, "mística indiana", pois de fato o indiano, de modo geral, vive esta comunhão espiritual com Deus nas suas criaturas. Daí se entende o grande respeito pela vida, seja qual for sua espécie, pois em tudo está Deus. A própria ideia da reencarnação, não obstante seus muitos pontos negativos, nos leva a um grande respeito por tudo, pois segundo a espiritualidade indiana, em tudo poderia se encarnar um ser humano.
No ocidente nos materializamos um pouco demais, e fracionamos demais a vida. A oração é uma coisa; a moral, a política, a ciência, a economia enfim, a vida é outra. Muito própria, neste sentido, é a encíclica de João Paulo II, "Fé e Razão" denunciando a separação entre fé e a razão, ou seja, a fé e as ciências humanas. A fé, se autêntica, nos faz viver no mundo de forma "sobrenatural", criando, sempre de novo, uma unidade de vida a partir da fé da e comunhão com Deus.
Segundo o testemunho dos irmãos mais velhos, Pe. Calábria transmitia este "mundo sobrenatural'' mantendo sempre um discurso muito espiritual mas comprometido com os sofrimentos humanos e zelando pelos valores humanos que realmente constroem o homem: Não ceder à tentação, à crítica destrutiva, à calunia, a discursos demasiado corriqueiros. Manteve sempre uma grande sobriedade no falar e no trato com as pessoas. Tornou-se famosa a sua frase, "qual foi o último enforcado em Verona" para cortar drasticamente as críticas destrutivas ou os discursos demasiado rasteiros. Se lermos com atenção seus escritos, podemos ver que mesmo não citando a Palavra de Deus, são escritos que continuamente ecoam a mesma Palavra. Portanto, seu programa de sermos "evangelhos vivos" supõe, antes, que a Palavra molde nosso pensamento, nossas palavras para que depois possamos agir segundo o Evangelho.
Quem já visitou a casa, S. Zeno no Monte, onde Pe. Calábria viveu por mais de 40 anos, pode perceber um ambiente que fala por si mesmo. A acolhida no portal é feita com o programa da Obra: "Buscai o Reino de Deus e sua justiça, e o resto vos será dado por acréscimo" (Mt 6,33).  Dando um passo mais para dentro da Casa podes ler os "cargos perpétuos", e se visitares cada ângulo da casa, encontrarás frases bíblicas ou símbolos religiosos que criam um "clima sobrenatural". A este respeito, o mestre de espiritualidade e artista religioso, Pe. Rupnik, recentemente, denunciou que a arquitetura das igrejas, mas isso vale também para as casas religiosas e as das família cristãs - se tomaram um tanto pagãs, privadas de símbolos religiosos que elevam o espírito humano a um "clima sobrenatural".
No campo da espiritualidade ele repetia que as orações que realmente lhe tocavam o coração eram as que sua mãe e suas professoras lhe ensinaram quando era criança.
Pe. Calábria e Pe. Luis Pedrolo
cuidando de crianças abandonadas
Apesar de viver este "clima sobrenatural", Pe. Calábria sempre esteve à busca de entender e realizar a vontade de Deus. Vontade não manipulável, tampouco facilmente tangível, mas algo a ser buscado continuamente na reflexão, na oração, nos fatos da vida e nos sinais. Mesmo vivendo este "clima sobrenatural", Deus permanece sempre um mistério a ser continuamente perseguido. É a mesma lógica dos discípulos de Emaús. Na longa caminhada, na sua escuta e no partir do pão, o reconheceram, mas imediatamente se lhe tornou mistério a ser buscado de novo e sempre de novo. Pe. João Calábria, era ciente que Deus não é um objeto que podemos manipular a nosso bel prazer, mas é o mistério imperscrutável que nos abrange e que somente a apalpadelas podemos entrever. Daí sua longa reflexão, meditação e o fato de por sinais, na busca da vontade de Deus, quase que provocando Deus a se manifestar.
Usava por, ou pedir um sinal, para decidir sobre uma pessoa, abrir uma casa, e para as coisas simples da vida. Tanto que ele pode afirmar que a Obra nasceu dos sinais. Sinais simples, como o exato valor em dinheiro para um determinado projeto, a pessoa certa para o momento certo... Claro, juntamente com estes sinais externos, a Palavra de Deus, a Eucaristia, a frequência dos Sacramentos, o amor e serviço aos pobres, fizeram de Pe. Calábria um homem de Deus. Não uma vida fragmentada, feita de momentos, mas toda ela dedicada a Deus e ao próximo.
Um homem que vive tal comunhão com Deus e com o próximo, se torna uma antena que capta ondas que nem todos captam. Pe. Calábria viveu praticamente na sua Verona durante seus 81 anos. Evidentemente, visitava as comunidades próximas e talvez, por três vezes visitou as de Roma. No entanto viveu uma profunda comunhão, no sentido de "sentir com", com o mundo de seu tempo.  Acompanhava com grande interesse e colaboração a vida da Igreja e do mundo. Apoiava toda e qualquer iniciativa de bem. Às vezes ajudava economicamente, muito com sua oração, e frequentemente escrevia dando a maior força a novas iniciativas. Foram estas as circunstâncias que lhe possibilitaram criar relações profundas com bispos, políticos e personalidades de outras religiões.

*Pe. Waldemar José Longo é religioso pobre servo da Divina Providência, missionário na missão calabriana da Índia.
Contato: waldemar.longo@gmail.com